Bibliofilia: gosto e cuidados com os livros
Alguns conselhos aos bibliófilos
Leopoldo Berger
„Zeig’ mir deine Bücher
Und ich sag’ dir wer du bist.“
“Mostra-me teus livros
e dir-te-ei quem és.”
Esta velha frase tem decerto algo de verdade; completando-a, podemos ainda nela incluir o trato e o carinho que se dispensa ao livro. O tratamento do livro não tem nada de comum com o grau de cultura da pessoa. O amor ao livro, isto é, à encadernação, é um sentimento particular, que não compete a qualquer um. Mesmo pessoas cultas, amadoras e conhecedoras da arte em geral, nem sempre são também amadoras do livro. A encadernação, entretanto. é uma arte que dá ao seu amador duplo prazer: visual e tátil.
Ao contrário dos conhecedores das artes plásticas ou mesmo da música, onde o prazer é concebido através da visão ou da audição, a encadernação não satisfaz em vê-la; a pessoa tem a necessidade de apalpá-la, de sentir aquela voluptuosidade inexplicável. Conta-se que, em certa biblioteca imperial, havia um empregado cego que examinava os livros vindos do encadernador exclusivamente com as mãos.
Muitas pessoas de destaque foram atraídas por esta arte, aprendendo-a e cultivando-a. Sabemos que o príncipe Henrique da Prússia (citado nos Estudos Alemães de Tobias Barreto) aprendeu a arte da encadernação com um grande mestre berlinense. O arcebispo vienense, Dr. Piffl, também aprendeu a encadernar. Pouca gente no Brasil sabe que o Pai da Aviação, Santos Dumont, se dedicou à encadernação quando estava na Suíça, cultivando-a até à sua morte. Atualmente, reside no Rio D. Isolda Lino Norton, senhora da alta sociedade que se dedica também a esta arte com grande perfeição e gosto, conforme ficou patenteado na exposição realizada na Academia Brasileira de Letras, em maio de 1936. Concluindo, vemos que o amor à boa encadernação não é um esnobismo nem tampouco está sujeito à moda; é, por assim dizer, a gratidão e o culto que dedicamos carinhosamente ao portador e guarda dos mais altos valores espirituais.
Nós, homens do livro, vemo-lo constantemente rodeado de um grande inimigo, principalmente no nosso clima tropical, o chamado “bicho do livro”, também conhecido pelo nome de traça. Vamos expor aqui o nosso ponto de vista a respeito, adquirido através de um quarto de século de observações e experiências. Infelizmente, os manuais e as revistas da nossa arte pouco ou quase nada referem a respeito, pela simples razão de não serem os livros, nos climas temperados, tão perseguidos por essa praga. O afamado pesquisador alemão G. A. Bogeng, autor de muitas obras sobre tipografia, o livro e a arte da encadernação, refere apenas em poucas palavras que na Antigüidade se usava óleo de cedro como meio preventivo. Isto, em nossa opinião, só podia servir para a conservação do couro. O grande mestre inglês Douglas Cockerell, na sua obra Bookpinding, and the Care of Books, 2nd. edition, 1906, aconselha o uso de naftalina e cânfora, o que é absolutamente ineficaz. Outro mestre e restaurador, Paul Adam, menciona também cânfora e naftalina, aconselhando ainda a limpeza. Os meios de combate praticados por alguns de nossos fregueses (meter o livro dentro de querosene ou gasolina) são inaceitáveis e detestáveis, por duas razões: porque, segundo o prolóquio alemão, põe-se fora a criança com a água do banho, o que quer dizer que o livro sofre em sua estrutura (a cola, a linha, o papel etc.) e se torna insuportável pelo cheiro.
Para expor a nossa opinião a respeito, vamos citar uma frase de um autor inglês, de cujo nome não nos lembramos. Diz o seguinte:
“Os livros são comparáveis às virgens: quando não usados, murcham.” O livro quer que nos sirvamos dele, consultando-o de vez em quando, abrindo-o e limpando-o, de modo a não dar ao “bicho” tempo de ocupar-se com ele.
O eminente Sr. Ministro Rodrigo Octavio, a quem devemos a fineza de prefaciar este livro, teve ainda a bondade de nos transmitir as seguintes linhas, extraídas de um artigo sob o título “O Anobiideo”, estampado no Jornal do Comércio, desta cidade, em março de 1908, pelo ilustre Professor da Faculdade de Medicina, Dr. Pedro Severiano de Magalhães, traduzido da Revue Scientifique, de 4 de janeiro do mesmo ano, publicação referindo-se a um trabalho anterior publicado nesta cidade em maio de 1905, especificando quais os principais inimigos do livro no Brasil, externando-se assim: “Estudei especialmente três espécies desses insetos; os considerados mais perniciosos às bibliotecas do Brasil e que são uma Tinea, a verdadeira traça dos brasileiros e dos portugueses; uma Lepisma corpulenta, muito comum, que se encontra em toda parte onde há papéis ou trapos etc., e erradamente designada com o nome de traça pela gente do povo pouco cuidadosa de falar corretamente, e um Anobiideo, chamado vulgarmente caruncho ou carcoma. A primeira espécie causa na realidade pouco prejuízo aos livros, e as acusações que lhe fazem parecem-me muito exageradas.
A Lepisma, esta sim; rói muito freqüentemente o papel, mas superficialmente, e se consegue às vezes furar muitas folhas superpostas, nem por isso é menos certo que os seus estragos são mais extensos do que fundos.
O terceiro inseto citado é o mais terrível destruidor dos nossos livros, das nossas bibliotecas e dos nossos arquivos, que ele devasta completamente e com pasmosa rapidez. Entrando em número considerável pelos volumes, os carunchos nutrem-se neles e à custa deles na sua vida longa de larva; furando-os em todos os sentidos, cavando galerias sinuosas e múltiplas, reduzindo os livros a estado de crivos, transformando as páginas em fantásticas rendas, destruindo as costuras da encadernação e pulverizando os papelões. Esse Anobiideo, que na sua voracidade espantosa nada poupa, devorando de preferência o papel e o papelão, porém mesmo a madeira, é com certeza o maior flagelo dos livros no Brasil.”
Temos observado que o caruncho prefere o papelão amarelo, cuja matéria-prima é a palha. Podemos considerar-nos felizes por ser este papelão atualmente de pouco uso entre nós. Outro incômodo para os bibliófilos é o mofo. Provém da umidade do nosso clima e principalmente nos lugares perto do mar. É aconselhável de vez em quando esfregar os livros com uma flanela e um pouco de azeite fino. A biblioteca não deve ser instalada num local úmido, nem tampouco em lugar muito quente. Tanto o ar úmido como o ar quente corroem a encadernação. Ao livro úmido e mofado, é aconselhável um pequeno banho de sol, mas não demasiado. Por fim, uma pequena advertência aos escritores que costumam editar seus livros por conta própria. Supõem geralmente que, quanto mais grosso o papel, melhor o livro. É um grande erro! Um livro de grande tamanho suporta papel mais grosso, nunca, porém, um livro pequeno. O defeito manifesta-se na hora de encadernar. Um livro em 8º' ou em 4º, impresso em papel demasiadamente grosso, nunca dará uma boa encadernação, pois falta-lhe a flexibilidade; geralmente costumam responsabilizar o encadernador, que não tem tal culpa.
Fazendo uma pequena observação sobre a estética de uma estante de livros dentro duma casa, aconselhamos a não uniformizar as encadernações, tanto nas cores como no material. Também não deve predominar o ouro.
A diversidade dos materiais nas lombadas, tecidos e couros em várias cores, pergaminho com sua coloração suave, quase indefinível, com um dourado escasso, forma no conjunto um quadro sinfônico, dando-nos o prazer de ficar diante dele horas e horas. Os livros, com exceção dos muito grandes e pesados, devem ficar em pé, bem verticais, sem cair para o lado, pois perdem assim a sua forma original e sofrem na estrutura. Quanto aos pesados e grandes, convém conservar deitados.
Vou expor algumas normas úteis para os amadores do livro:
O tipo da encadernação deve ser adequado ao caráter e ao valor do livro.
A encadernação sólida começa na costura.
Um livro mal costurado não ficará bom, mesmo com a cobertura de marroquim.
Todos têm observado que, no livro, a capa muitas vezes está em perfeito estado, enquanto a estrutura interna, isto é, a costura, está completamente rota. Um simples tecido, seja de linho ou de algodão, é preferível ao couro mal curtido. Deve-se exigir do encadernador que apare o livro o menos possível.
Muitos livros perdem com aparação demasiada o valor estético e material.
Para um livro bom e valioso, deve-se exigir o melhor material.
O verdadeiro bibliófilo deve sempre procurar estar em contato com o encadernador, para dar-lhe sugestões e aceitar conselhos, estabelecendo assim uma verdadeira reciprocidade.
Concluindo, vamos nos servir duma frase do saudoso ator Leopoldo Fróes, que disse: “A roupa é a encadernação do homem.” Invertendo esta frase, nós dizemos:
A encadernação é a roupa do livro.
Fonte: Leopoldo Berger. Manual Prático e Ilustrado do Encadernador. Rio de Janeiro: Ao Livro Técnico, 1957. 3ª ed.